O NOME NÃO BASTA

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Mulher é bicho esquisito

Todo o mês sangra”.

(Cor de Rosa Choque, Rita Lee e Roberto de Carvalho)

Em algumas culturas, o nome dado a alguém confere a trajetória de vida e as qualidades de sua alma. Em outras, o uso de sufixos indicam a filiação. É fato que alguns chamam a atenção, sejam por sua beleza, originalidade ou excentricidade. Assim como os apelidos.

Eu sempre tive necessidade de apelidar quem é muito querido em minha vida. Sim, também o fiz por deboche, vingança, mas não é sobre isso que penso no momento.

O que me encontra perturbando essa noite é o fato de ainda não ter encontrado um apelido para você, que enxerga o meu lago profundo e sabe nadar nas ondas do meu mar.

Eu me tornei um ser melhor com você, em parte pela vergonha em derrapar nas curvas repetitivas na estrada de minha existência.

Você é o dijuntor que sabe desarmar o excesso de passagem de eletricidade em meu sistema. “Ei, vamos ver, espera um pouco”, você diz com as mãos em meus ombros, e tudo parece se acomodar em fofas almofadas.

Desde o início você se divertiu e não se espantou com minha cristalinidade e compreendeu quando eu deixei algumas coisas no mistério, até que confiasse ser a hora certa de se revelarem.

Você me agradeceu quando lhe apoiei diante do diagnóstico de câncer na tireoide do seu pai e de toda a via-crucis que se desenrolou depois, quando você e a família se desanimavam. E foi acolhedor, quando um certo dia, eu desmoronei em choro ao ver uma pessoa morando na rua, encolhida sob a marquise de um banco porque simplesmente me bateu uma exaustão do capetalismo.

Você entende os dias em que estou agitada, com o pensamento e fala acelerados, e respeita quando caio em prantos. Você ri quando eu digo que acolhe minhas lágrimas e meu ranho.

É preguiçoso e óbvio apelidar “Adão”, além de nada a ter a ver com você, que me permite ser tudo o que posso, e não é homem de querer que uma mulher provenha de sua costela.

Existe uma generosidade incrível de sua alma, que toca a minha combinação de personas com um afago, e você, também dual, sacode meu íntimo diante de resistências que não me levam a lugar nenhum. Com você finalmente posso revelar minha força e medo, caos e sistematização, revolta e diplomacia, compaixão e ironia. Pela primeira vez na vida afetiva não foco em ser mulher e sim, humana.

É tarde e essa semana não tem feriado. Cobrimo-nos com a manta. Trocamos boa noite e você se encaixa em minhas coxas ao dormir. Forte, delicado, merecedor de um apelido a cada dia que se passa.

Em estágio limítrofe entre pensamento e sono, vem à minha mente e ao meu sorriso: como não pensei antes? Manawee!

Autoria: Luciana Ferreira

Inspiração: Projeto com Aline Lopes: um poema para capítulos do livro MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS

Ao meu professor de inglês

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Persigo no caminho

Sem a luz das tuas correções

atentas e gentis

Sem elogios

e os generosos Way to go!, “Good!”.

Estudo inglês sozinha

Encontro a frase no Google Translator

Pensamentos paralelos me atravessam

Dos líquidos que em mim escorrem

Lágrimas não encontraram pote em você:

Dói.

Traduzo o texto e a mim

Continua doendo

Continuo o estudo

Autodidata

No idioma e na Vida.

Lateja a saudade

Respiro

Me falta um pulmão.

Entre readings e speakings

Tropeço

Sem doçura tua na minha ansiedade.

Com pouco fôlego subo a montanha

Costas curvadas pela tua não presença

Marcante

Divertida

Bonita

Contínua

Ora fluida, ora intensa

Sempre precisa.

Por dois meses seguidos

Moramos juntos

No Whatsapp e no Teams

Hoje cômodos esvaziados

Sensação térmica de fim de namoro.

Meu professor querido

Meu sorriso matinal

Minha trolagem da tarde

Meu carinho noturno

Meu Bom dia

Meu “E aí?”

Meu Boa noite e Sweet Dreams

Meu Rivotril

Minha cachoeira de elogios

Meu vale de tesão

Minha loja de palavras

Minha despedida interminável

Meu companheiro de séries

Meus dias dourados

This Was Us.

Te guardo ainda aqui

Em falsas esperanças

Em francos apegos

Em coerências e discrepâncias

Vou colando os meus ossos

Fraturados no insucesso

De desfazermos os nossos nós

E sermos NÓS.

CHAMADAS DE VÍDEO

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Ainda não tivemos tempo de falarmos exatamente o ponto em que um se sentiu de verdade conectado com o outro. Os dias de conversas foram rolando, nada leves como geralmente são os inícios de uma paquera. Foram confissões de passagens problemáticas, depois algumas brincadeiras e tiradas marotas.

Ah e silêncios rápidos com olhares fixos na câmera do celular. Arrepios na espinha impulsionado pela fantasia da proximidade. A tecnologia tentando ventilar o calor do tesão, o qual se impõe e cava por si mesmo uma intimidade que aos olhos alheios seria precoce. Não para nós. Somos dramaturgos, diretores e atores de nossa própria peça teatral em busca do palco para os variados atos que escrevemos.

A despedida vem com o tchau arrastado, o momento indesejado que afinal sempre chega. Não vem é a hora de nos vermos pessoalmente. O quase encontro teve de ser remanejado, pois a maturidade tem as suas intercorrências, um contexto de árvore adulta sob o vento que sopra com o apelo da juventude.

Em uma cena para Fernando Pessoa gargalhar com cara de eu sempre tive razão, nossos corpos quentes e com urgência de presença nos leva a aproximar nossas bocas no celular em um beijo imaginário. Rimos pelo ridículo e proponho “agora de língua”. Em você encontro abertura para a bobagem que enseja a cumplicidade das relações, alegre como as bandeirinhas de festa de São João.

Todas as chamadas de vídeo são ridículas. Não seriam chamadas de vídeo se não fossem ridículas.

VOLTANDO PARA CASA (UMA DELAS)

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OU

HERE COMES THE RAIN AGAIN – COMO VOCÊ PREFERIR

Insistiu por meses – cedi

O que vinha sem regar, floresceu.

Imersão em som dançante

e aquela vontade que conheço

de me jogar na pista

e se reconhece quando pulsa em meu peito.

Na acolhida fofa em teu lar

dancei com patufas

entrega e alegria.

Tomei a batida servida

todo o leite condensado desse mundo

teor alcóolico das freiras tibetanas

não é sua especialidade

tens outras, imensuráveis

Embriaguez singular: liberdade.

Olhei-te

Recolhias roupas no varal

dobravas as peças

e os nós da vida

mãos delicadas, amorosas

nasceste para casar

Talvez eu quisesse ser assim

talvez fosse mais leve para mim.

Colocamos o papo em dia

Gritos: música que adoramos rolando!

Tivemos várias conquistas

e perdas nessa jornada

Eu só quero te agradecer

por me dar esse beijo de vida

e me acordar do sonambulismo.

Faltou gente

Deus sabe quais

o quanto eu as queria

e de qual jeitinho.

Não me conformo com uns lances

mas reconheço, Ele é fofo comigo

Tenho de me dobrar para algumas coisas

fato (inutilmente) detestável.

Bem, esse texto é uma pretensão de amor

E digo aqui : te amo

Retornei cantarolando à minha casa

reverenciando a garota

que ainda habita em nós

que quer respirar de peito aberto

beijar como os amantes

mergulhar no oceano

sem se molhar pela metade nessa chuva.

Somos Eurythmics, ainda

Em resistência a esse ano

Que não irei numerar.

A todos os apaixonados por dançar que se foram pela Covid 19.

EU ME TORNEI ESTA PESSOA

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Dependendo do quanto que as pessoas contavam ter custado um objeto, meu pai calculava analogicamente se daria para uma feira. Sabia o preço de todos os produtos de cor e eu não entendia como guardava tantos dados na cabeça.
Hoje, quando faço supermercado e feira, sei o quanto o preço dos produtos aumentou. Quando a cebola está cara uso alho poró; se o tomate italiano subiu tento ver se compensa trazer o cereja. “A dor ensina a gemer”, praticamente vejo meu pai falando na minha frente.
Ele não se adaptou ao MP4, mesmo podendo ter todas as músicas que quisesse na hora que quisesse. Preferia o radinho. Usava fone que teimava em lhe sair do ouvido. Parava a varredura do apartamento para aumentar o volume da música que gostava. Ouvia AM.
Eu, rezo para que meu MP4 não quebre. Está indo para oito anos. Apanho no Spotify, irrito-me com comerciais, tanto ali como em outras plataformas. Prefiro mil vezes ao celular para ouvir de noite, principalmente as minhas músicas new age.
Meu pai gostaria, mas não podia ler o jornal diariamente, por questões de não ter grana para comprar. Quando o fazia, sempre checava o serviço de luto e dizia: “Fulano faleceu. A referência dele é menor que a minha, ele é mais novo do que eu. Que pena. Vou jogar no bicho amanhã”, se referindo ao número de registro na CODESP.
Raramente leio jornal físico, embora saiba que o conteúdo é melhor do que o gratuito na internet. E quando o faço, eis que… confiro o serviço de luto e infelizmente, registro falecimentos, missas de sétimo dia. Não são mais os pais de pessoas conhecidas. Por força da data de meu nascimento, já são as minhas pessoas conhecidas.
Não vejo referências na Codesp, mas sempre olho registro de OAB e CRM para ter uma ideia de quanto tempo milita o profissional.
Meu pai adorava receber para almoços, cuidava com muito carinho da comida e bebida. A casa, o lar, eram temas muito caros. Talvez no sentido mais amplo, pois ficava encarregado da documentação de campas da família (a última morada). Informava quando tinha ou alguma disponível ou a liberar por exumação. Com muita atenção arquivava estes documentos para que estivessem à mão “em uma dor de barriga”, dizia. Adivinhe com quem ficaram estes documentos, sendo eu filha única? Preciso responder?
Não recebo pessoas com todo o carinho como ele, principalmente no dia seguinte em que passei pano no chão, pois penso que irá sujar rápido novamente. Neste ponto, diferimos. Como em outros também.
Ele cozinhava com cara de quem brinca de casinha, gestos ritmados. Geralmente faço as coisas com tempo curto e corro um tanto. A semelhança é que deixamos cair muito os objetos no chão, as tampas das panelas ficam rodopiando feito as baianas de escola de samba.
Traço meu próprio caminho para a cada dia ser uma versão melhor de mim. Por outro lado, penso que Belchior continua atual de alguma maneira: “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Ainda bem.

Com todo o meu amor para meu pai Irinaldo Ferreira

ACORDES QUE ACORDAM

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Acordes que acordam2

ACORDES QUE ACORDAM

Nova York, 1810. Verão, porém o quarto está frio para Kathleen.
A menina de dez anos puxa o lençol com as mãos gordinhas até o queixo fino. Aperta a boca rosada, nervosa, e em seguida os olhos verdes. Não quer ver e tampouco se fechar no escuro. Abre-os.
Para diminuir o frio que é apenas seu, espalha a cascata de cabelos lisos e longos sobre os ombros.
O estômago alto levanta e abaixa a coberta por causa da respiração ofegante. Escorrega na cama e deita de lado.
Silêncio pesado. A orelha descoberta fica gelada em seu lóbulo grosso. Levanta a testa e sobrancelhas não lineares. A temperatura abaixa mais naquele cômodo.
As narinas largas de Kathleen se abrem. Nem adianta pedir socorro enquanto a imagem vai se formando à frente do guarda-roupa. A avó, severa, beata, não acredita em visões. O padre advertiu a ambas que é o demônio imbuído de causar confusão. Absolveu-a mediante rezar quarenta Ave- Marias.
A pequena estátua da Virgem Maria na cômoda tem expressão de sofrimento. É justo rogar a quem também chora?
Mãos unidas em súplica inicia o terço sabendo nada adiantar. O mal, como que enganado, parece depois dar-se por si e retorna em três ou no máximo cinco noites, bagunçando os ensaios de soprano da menina no colégio de freiras.
As horas decorrem para duas distintas vivências. A conhecida aflição de Kathleen, que sabe se o sono for ruim, igual será o seu desempenho na aula de canto e maiores as rígidas admoestações da mestra.
Enquanto que em outro lugar, bem qualquer, uma figura feminina sorri triunfante, rodando com sua roupa de corte justo acima da cintura, decote quadrado e baixo, saias com anágua. Um traje que nega a si mesma estar puído, o qual acredita combinar com a coroa encardida nos cabelos desgrenhados. Comemora em taça imaginária sua afinação nos acordes que soam as notas do medo e perturbação dos incautos.

Crédito da foto: http://www.canstockphoto.com/ghost-of-young-bride-in-white-dress-and-42750768.html

IMPOTENTE

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Hoje de novo tentei
insisti no diálogo amistoso
na intercessão amiga
para soltar a trava
diante de quem prefere
segurar tabus
invocar a religião, a tradição
em detrimento de família
memória, afeto, teto e tanto

Escolhi o melhor tato
pontuei o trágico perigo
encontrei secura e revide:
não me importa o que você pensa

Lavo as mãos, triste

Impotente 030519

TRILHA DA CHUVA

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chuva

Despenca a chuva fim de tarde

Encharcados gente, ruas, sapatos

Eu e você.

No perigo de estar ao relento

o café nos acolhe e aquece.

Dias e noites prosseguem

Mensagens e áudios esticam os encontros

Sob mais chuva, virtual ou presencialmente.

Chuva juntinha à sua voz no Whatsapp

Pela primeira vez

Sinto o coração no inverno cantar

Nessa água que me lava

A dor antiga e misteriosa.

Chuva

Você acenou com um encontro

Respiraçãozinha na semana chapada

O Nando lançou álbum novo

Como não ouvir com você?

Chuva

No inverno desse ano se prolongou

Povo chiando horrores

Ansiando por praia e sol

Falo nada, é coisa tão minha

Tão cativamente minha

Quero não que parem essas chuvas

Trilha de papos em altas horas

Pano de fundo de nós dois.

Das gotas que escorrem no vidro

Fazemos imitação com as mãos

Ao conquistarmos territórios

Que homologamos um ao outro

Chuva de quentura e colorido

Creio que a esteja retendo

Não exatamente por si

Mas por você.

A FALTA DO SÓLIDO

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A falta do sólido

Tomado o banho quentinho e o chá de camomila, abro um livro de Mia Couto.
Menos de cinco minutos fecho. Coloco uma playlist New Age para ouvir. Não adianta. Sincera demais para mentir a mim. Quero conversar, trocar ideias e impressões. Está ainda relativamente cedo.
Abro o Whatsapp e escrevo puxando papo para saber as novidades. Cinco pessoas respondem que está tudo bem e mandam emoji de beijo. Somente uma linha. Não há tempo para os que se conhecem há tanto tempo. Por quanto tempo ainda nos manteremos amigos?
Gostaria de uma conversa que tivesse início, começo e fim. Geralmente ficamos pendurados no meio de uma narração, explicação, retomando horas ou até mesmo dias depois. Um leque de demanda ou entretenimento, fragmentando nossa atenção e relações.
O celular vem sendo como uma parte do corpo. No meio de um encontro, do nada, quebra-se a conversa ao meio e checa-se o aparelho. Estranhar é passar por implicante. Por certo, tivesse sido eu que tirasse um livro para ler um pequeno trecho, pensariam o quê? Chamariam de uma pausinha ou me acreditariam maluca?
Diariamente entro em rede social, mas não me permito ser arrastada como peixe fisgado. Peço licença quando preciso verificar algo no celular, pois se estou na companhia de alguém que dedicou um momento para mim, o mínimo que merece é que eu esteja inteira.
Percebo que as pessoas pararam de esperar. Bastam uns segundos aguardando que de pronto tomam o celular nas mãos. A apreciação do local, de transeuntes, da natureza, o escutar o ambiente e a si próprio ficaram para trás. O que será que tem brotado dentro do ser quando colocado quieto e em silêncio?
Previsto por Baumam, os afetos estão se diluindo e me entristeço cada vez mais com este fato. Sinto falta de um bom café, almoço, filmes entre amigos. Não esporádicos, difusos, e sim quando havia vínculo. Amizade é valioso, o vínculo é maior: cria corpo.
É isso: corpo, calor, toque, sorriso, risada, olhar. Tem estado frio. Não sentem?
Parece que somente eu persisto em deixar um tempo para si, teimar em viver e equilibrar.
Terei de me acostumar, é uma realidade do milênio. Duro para quem foi adolescente nos anos 80, quando o telefone nos prolongava os relacionamentos, os papos iam até o finzinho, tinham gosto de quero mais e fazíamos acontecer.
Sinceramente? Detesto as frases: “a gente vai se falando” e “vamos combinar”. Não, a gente não vai se falar, nem vai combinar bosta nenhuma. É tão ridículo quanto querer transar e a pessoa lhe responder: “Legal, a gente vai se esfregando durante a semana”.
Em uma palestra do jornalista local Marcus Vinicius Batista, sempre sensível e ponderado, ouvi sobre os tempos atuais e para tentar não ser ranzinza.
Eu tento, Marcus, mas está tão difícil…tão difícil…

FRESTAS

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Frestas

É tarde ensolarada de verão, para a qual temos nosso roteiro.
Nem lembro como e quando foi escrito, apenas que por nossas quatro mãos.
A intimidade começa nos primeiros minutos do crepúsculo. O olhar indica a peça de roupa da qual é para o outro se livrar.
Em pé, frente à janela nos conduzimos no espaço dentre os paineis da cortina.
Nossos corpos se enroscam e nus querem se azular. A cada profundidade de beijos nos fundimos e fazemos da Natureza nossa parceira em uma ménage-a-trois. Sentimos o acréscimo de especialidade que risca o momento e o céu com o surpreendente relâmpago.
Abro os olhos repentinamente e contemplo o teto.
Pela terceira vez o mesmo sonho neste 12 de Junho.
Desisto de dormir esta noite.
Sem saber direito o que farei de mim, começo por fechar a veneziana para não me molhar com a tempestade de fora.
Quanto a que trago comigo, permito-me dar vazão.